É eleito secretário-geral do SIM num momento de mudança de Governo e de instabilidade política. Tendo em conta esta conjuntura, o que mais o preocupa na área da Saúde?

Desde que o Primeiro-Ministro António Costa se demitiu, o SIM teve de tomar algumas ações estratégicas, porque as negociações que estavam a decorrer ficaram completamente condicionadas. Estava-se a trabalhar com o anterior Governo em várias frentes: aumento salarial, redução para as 35 h semanais e diminuição da sobrecarga de trabalho em urgência. A partir do momento em que se sabe da demissão, o Governo entendeu que já não poderia assumir uma responsabilidade para múltiplos anos e somente pelo Orçamento de Estado deste ano. Isto levou a que o acordo com o SIM incluísse apenas a componente salarial.

Esperamos que com a nova ministra da Saúde, a Dr.ª Ana Paula Martins, se retomem as negociações e a vontade de resolver os vários problemas que existem, sempre com diálogo. O SIM reuniu com todos os partidos antes das eleições e todos foram unânimes em reconhecer que há problemas, que o trabalho médico não é devidamente valorizado. Os temas que ficaram pendentes, nomeadamente a questão de se complementar a valorização salarial já conseguida, deve ser feita agora. Já pedimos uma reunião e o Ministério vai receber-nos. O nosso objetivo é que possamos também dar o nosso contributo para a implementação do Plano de Emergência para o SNS nos primeiros 60 dias, uma medida que está contemplada no Programa do Governo e que foi promessa eleitoral.

De que forma pretendem fazê-lo?

Temos várias opções a ser tomadas que têm que ter em conta os profissionais, nomeadamente o acesso, que é o principal problema no SNS. É do conhecimento geral que existem 1,6 milhões de portugueses não têm médico de família, as listas de espera para consultas e cirurgias têm 2 e 3 anos de espera nalgumas especialidades e o SIM tem soluções e quer dar o seu contributo para esse Plano de Emergência.

Relativamente à acessibilidade, o que se deve fazer no imediato?

O que temos pedido é uma visão futura de longo prazo. Quando os médicos veem que as suas perspetivas de carreira não são muito animadoras, que vão ficar na mesma posição durante muito tempo, na sua vida pessoal têm que tomar uma decisão. Se o SNS não lhes permite ter essa valorização salarial, se não contribui para a sua evolução técnico-científica… Em suma, não é só uma questão remuneratória, mas também de condições para trabalhar e para manterem a sua formação contínua. O Estado demite-se desta vertente. Quando os médicos têm de fazer um curso de elevada complexidade, com diferenciação técnica, têm de pagar, mesmo quando vão para o estrangeiro. E depois, na prática, são eles que trazem a inovação ao próprio SNS…

Atualmente, 50% dos médicos está na primeira categoria da carreira, 70% dos médicos nunca foi avaliado no seu desempenho e isto não lhes permite a progressão salarial”

Na questão da remuneração, houve o acordo para o aumento de 15%, mas o SIM já disse que quer chegar aos 30%. Pode ser de forma faseada?

Sim, nunca pedimos tudo para ontem. Aliás, o SIM já tinha acordado com o Governo e com os colegas da Federação Nacional dos Médicos (FNAM) que algumas destas medidas seriam faseadas. Em termos orçamentais, não se pode ter tudo ao mesmo tempo. Não vamos pedir nem mais nem menos a este Governo. Pedimos, assim, que haja o acrescento dos restantes 15% até 2026 e que as outras matérias também sejam abordadas e concretizadas.

E em relação a essas outras questões, o que é mais crítico?

Atualmente, 50% dos médicos está na primeira categoria da carreira, 70% dos médicos nunca foi avaliado no seu desempenho e isto não lhes permite a progressão salarial. Esta situação tem que ser desbloqueada, ou seja, os concursos têm que decorrer a tempo e horas. Temos um concurso para consultor em que abrem vagas apenas de dois em dois anos! Os concursos têm de ser mais céleres e com um número de vagas adequado. O SIM defende que todas as vagas para o SNS devem estar permanentemente abertas, como já acontece noutros países. Se faltar um quadro no Serviço de Cardiologia, em Londres, têm sempre uma vaga aberta. Em Portugal é sempre preciso uma autorização do Ministério das Finanças. Compreendemos perfeitamente as queixas dos administradores hospitalares quando dizem que não têm autonomia. A abertura permanente de vagas é uma forma de se conseguir fixar profissionais no SNS e até de tornar mais apelativa a ida para o Interior, permitindo uma melhor gestão da sua vida familiar.

Há muito tempo que os médicos dizem que a questão do descontentamento não se resume à questão salarial, mas, na prática, parece que os Governos se cingem somente a essa componente. Há demasiada centralização nos salários?

Mais ou menos… Todos sabemos que os médicos ganham melhor no privado do que no público. O que não pode acontecer é que haja uma diferença tão grande entre remunerações. Por exemplo, um médico especialista na primeira posição da carreira ganha 18,93 euros/hora, mas ainda ontem havia uma vaga para prestador de serviços na ULS Nordeste para trabalho em urgência, lado a lado com especialistas, a receberem 40 euros/hora. São estas disparidades que afastam as pessoas do SNS. Deixemos retóricas e passemos a concretizar os factos. Por outro lado, não é somente a remuneração. Na Ginecologia-Obstetrícia tem havido grandes problemas, nomeadamente a Sul, por causa da abertura rotativa das urgências e por as equipas estarem a trabalhar nos mínimos. Basta faltar um colega e a urgência pode fechar. Se tiverem duas ou três situações graves, como vão dar resposta? Os médicos não querem estar sujeitos a estes constrangimentos e acabam por abandonar o SNS.

“Não esqueçamos que a Dedicação Plena foi aprovada, unilateralmente, pelo anterior Governo, tendo alguns problemas associados, com muitas falhas”

Além disso, após 18 meses de negociações, o anterior Governo aceitou o aumento de 15% na remuneração, mas ao mesmo tempo têm que trabalhar mais horas. Acabou por ser um ‘presente envenenado’?

Os 18 longos meses de negociações contrastam com os 36 meses anteriores de ausência total de diálogo da Dr.ª Marta Temido… Por isso, independentemente da dureza e das dificuldades, já foi um avanço. Mas, obviamente, esperemos não voltar a precisar de 18 meses… Não esqueçamos que a Dedicação Plena foi aprovada, unilateralmente, pelo anterior Governo, tendo alguns problemas associados, com muitas falhas. Vamos também pedir que o diploma seja revisitado e discutido alguns dos pontos, porque está a gerar alguma conflitualidade, sobretudo nas unidades locais de saúde (ULS).

O processo de transição não está a correr bem?

Não, sobretudo no que diz respeito ao acordo do SIM com o anterior Governo e na transição para a Dedicação Plena. Ainda hoje temos imensos colegas que já quiseram aderir e que não foram aceites. São estas falhas de gestão que têm de ser colmatadas rapidamente.

A instabilidade política que se tem vivido, com eleições antecipadas, pode ser a razão para esse atraso?

Julgo que não. O objetivo de se criar a Direção-Executiva do SNS (DE-SNS) era precisamente haver uma separação entre gestão política e de saúde. O que esperávamos era bastante autonomia e capacidade de decisão para ultrapassar todos estes problemas de microgestão. Não é o Sr. Ministro que aprova a legislação que a tem de aplicar…Com a DE-SNS queria tornar-se o SNS mais competitivo, para resolver alguns problemas de eficiência. Nesta reforma também nos queixamos que não há apenas um SNS, há vários SNS. Umas ULS fazem de uma forma, outras, são diferentes. Há um conjunto de questões em que há divergências. Isso não pode acontecer, porque o SNS é um só e os trabalhadores têm de ser tratados da mesma forma, quer estejam em Bragança ou na Amadora. Falta capacidade de gestão, uniformidade e equidade.

Esses diferentes SNS devem-se, sobretudo, ao não se ter ouvido os profissionais que estão no terreno ou é mais uma questão de nuns locais há quem concorde com as ULS, noutros é-se contra?

Tem a ver com a própria aplicação das mudanças. Existe algum desconhecimento na área dos recursos humanos, nomeadamente nos cuidados de saúde primários. Por exemplo, na Saúde Pública há um conjunto de atividades que se realizam obrigatoriamente na comunidade. Os médicos têm que sair do centro de saúde e ir às escolas, fazer colheitas de água, etc. e ainda se verifica alguma dificuldade em se compreender que o profissional pode não estar no gabinete. E não tem que estar, porque não dá consultas. São, certamente, algumas dores de crescimento…

Mas, por outro lado, o problema é a generalização do modelo. A ULS Matosinhos tem tido bons resultados, mas é uma ULS de um único concelho, e urbano, com boas vias de acesso. É uma realidade completamente diferente de outras já implementadas antes desta reforma, como a ULS Nordeste ou a ULS do Litoral Alentejano. Nessas regiões existe uma grande dispersão geográfica e a integração de cuidados não correu tão bem como em Matosinhos. Este é um risco para a atual reforma, esperemos que o novo Ministério tenha em conta estas questões.

Relativamente às urgências, como vê a sua centralização? Concorda?

Não temos problemas em relação à centralização se os profissionais aderirem de forma voluntária, como acontece em várias especialidades na região Norte. Mas discordamos se for de forma compulsiva e obrigatória, porque são locais de trabalho diferentes dos habituais – implica outros riscos. Compreendo que haja colegas que não queiram fazer urgências noutro local.

Ao nível hospitalar, que outro problema gostaria de destacar?

A ausência de recursos materiais e tecnológicos que impedem que as pessoas sejam tratadas no devido tempo. Há sempre avarias nos equipamentos e ainda se tem de esperar pela sua substituição. Em termos de recursos tecnológicos, Portugal e o SNS têm poucos meios em comparação com outros países europeus, apesar de prescrever mais meios complementares de diagnóstico e terapêutica. Ainda no âmbito hospitalar, realço ainda a sobrecarga das urgências e a falta de flexibilidade nos horários.

Nos cuidados de saúde primários, o que pensa sobre o índice de desempenho da equipa (IDE)?

Primeiramente, consideramos que é uma evolução a expansão do modelo B a todas as unidades de saúde familiar (USF). Estamos muito satisfeitos com esta medida. Mas, de facto, alguns indicadores podem ser melhorados, como os relacionados com financiamento e custos. Mas, não queremos voltar atrás no que diz respeito ao modelo B. Deve-se, inevitavelmente, ter também alguma estratificação de risco, apoiada em indicadores populacionais. A Saúde Pública pode dar um contributo importante nesse ponto.

Fala-se muito em USF, mas não o preocupa a situação das UCSP? Não se fala tanto destas unidades…

O que estava previsto no diploma da Dedicação Plena é que os colegas das UCSP também pudessem ter um acréscimo na remuneração. O SIM tem uma proposta de ajuste para que o mesmo não se cinja ao número de utentes, porque nalgumas regiões isso não é aplicável. Apesar de tudo, este passo já foi um avanço face ao que acontecia anteriormente, em que não se previa este aumento por terem mais utentes na lista do que o normal.

Com novo Governo, receia que se possa pôr em causa algumas medidas, já que os ciclos governativos levam muitas vezes a uma política de ‘tábua rasa’?

Na Saúde não nos podemos dar ao luxo de estar sempre a reverter as reformas estruturais. É preciso avaliar os seus resultados e ver os pontos negativos e positivos. Pode obviamente haver alguns ajustes a fazer. A ministra disse-o ainda antes de assumir a pasta quando se referiu às ULS nos centros universitários. A reestruturação total do modelo ULS não nos parece produtiva.

A avaliação, em Portugal, é algo que não é muito habitual…

Esse é um problema. Não tivemos avaliação, por exemplo, da resposta à pandemia, do Plano Nacional de Saúde, das reestruturações de alguns institutos (de forma independente…). É preciso assumir que é preciso planeamento e, para tal, temos que avaliar para conhecer a realidade.

“Um dos grandes pontos negativos que atribuo ao Programa do atual Governo é a ausência de qualquer referência à Política do Medicamento”

A Dr.ª Ana Paula Martins é conhecida por ser uma mulher de diálogo. Acredita que, mesmo que estejam 18 meses em negociação, vão conseguir manter o diálogo?

Estamos confiantes. Vamos iniciar uma nova negociação e não temos quaisquer motivos para suspeitar da sua capacidade de diálogo.

Receia, no entanto, que se possa manter o bloqueio do Ministério das Finanças?

O problema financeiro do país é uma constante … desde sempre. Por isso mesmo, o SIM quer que o SNS seja mais eficiente, daí que seja essencial haver avaliação. Somos a favor da transparência. Em relação ao Ministério das Finanças, deveria haver mais autonomia nas administrações hospitalares.

Repare que o orçamento do SNS, entre 2015 e 2024, aumentou 72%, enquanto o salário dos médicos, na primeira posição da carreira, aumentou no mesmo período 19,5%. Isto significa que é preciso trabalhar nalguns gastos. Um dos grandes pontos negativos que atribuo ao Programa do atual Governo é a ausência de qualquer referência à Política do Medicamento. Quando temos fármacos que aumentam para o SNS, todos os anos, milhões de euros, inevitavelmente não vai haver verbas suficientes para os recursos humanos. O aumento das remunerações dos médicos representa um custo, mas há outras componentes com crescimento mais rápido e maior em termos de financiamento. Os médicos têm sido muito penalizados.

O SIM já assumiu publicamente que não tem qualquer problema com a articulação entre os setores público, privado e social. Tendo em conta que esta medida está contemplada no Programa do Governo e sabendo-se que uma legislatura já nem sempre se mantém durante 4 anos, deveria haver um pacto ou compromisso na Saúde, que fosse além da ideologia de cada partido político?

Sem dúvida! Não faz sentido destruir reformas sem as avaliar. Se existe uma reforma estrutural de longo prazo, a mesma deve ser mantida, independentemente da cor político do Governo. E deve, obviamente, ser avaliada de forma independente. A cor política leva a que haja prioridades diferentes nalgumas medidas, mas, de modo geral, todos queremos o mesmo: um melhor acesso a cuidados de saúde. O SNS tem que ser competitivo com os privados e, para tal, o Estado tem de apostar na contratação coletiva. Esta é a forma mais barata de se conseguir recursos médicos. Com as prestações de serviço, já se gasta mais de 200 milhões de euros.

Com tantos constrangimentos, preocupa-o a saúde física e mental dos médicos?

Sim, desde logo por causa do excesso de horas de trabalho que têm impacto na sua saúde e também na vida familiar. Por isso, o SIM pede a flexibilização dos horários e a autonomia das equipas para que possam definir os seus próprios objetivos e horários. Além disso, é preciso que o Estado cumpra a legislação. Temos milhares de médicos que nunca tiveram uma consulta de Medicina do Trabalho. Outra questão é a violência contra os profissionais de saúde. O que está a ser feito? Têm apoio?

“Nunca vamos ser um sindicato de protesto pelo protesto”

Com estas dificuldades, e com as greves, receia que a população possa ficar contra os médicos?

Julgo que não. A greve deve ser o último recurso e as pessoas reconhecem que os médicos enfrentam problemas, que ganham mal e que não têm boas condições de trabalho. O SIM tinha um compromisso de um ano para negociar com o Governo e durante esse período não convocámos greve. Partimos para a greve quando já não dava mesmo. Pela primeira vez também fizemos uma greve de internos e conseguimos um aumento da remuneração destes profissionais. Eles não têm qualquer apoio do Estado na formação. O SIM tem um fundo de 150 mil euros para apoio dos internos, por falha do Estado.

Nesse aspeto, diferem da FNAM, que fez greves durante o processo de negociação. Vão manter essa postura de ir para greve apenas quando é preciso?

Sim! Nunca vamos ser um sindicato de protesto pelo protesto. Vamos sempre cumprir os protocolos negociais, sem recurso à greve. Apenas o faremos em circunstâncias extremas. O SIM é um sindicato credível, com quem os portugueses, os médicos e os governos podem conversar. É um interlocutor sério.

Têm surgido alguns movimentos na sociedade, como o Médicos em Luta. Considera que pode ser porque o papel dos sindicatos está de alguma forma descredibilizado?

O Médicos em Luta surgiu numa altura de grande contestação e as pessoas têm todo o direito em reivindicar e expressar o seu descontentamento. Não temos qualquer problema com isso. O SIM considera, todavia, que o processo negocial é formal e os sindicatos estão previstos, felizmente, na nossa legislação. Ainda bem que se mantêm ao fim de 50 anos de 25 de abril. Não podemos negociar ao sabor do que possam decidir pequenos ou grandes grupos. Temos que ser sérios e ter todas as cartas em cima da mesa. É preciso negociar com seriedade e com calma. Mas, claro, quando for necessário algo mais duro, como a greve, temos que enveredar por esse caminho.

O que podem os médicos esperar do SIM no seu mandato?

Nunca vão ficar sozinhos! Temos mais de 200 delegados sindicais pelo país, incluindo arquipélagos. Temos representatividade nacional para dar apoio todos os dias. Muitas vezes, os médicos têm receio em confrontar a entidade patronal e é para lhes dar voz que servem os sindicatos. Podemos apoiá-los juridicamente e vamos neste mandato alargar o conjunto de benefícios, nomeadamente na formação de internos e de especialistas. Podem contar com o SIM na defesa sindical, jurídica e apoio a formação.

Maria João Garcia

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